quinta-feira, 28 de setembro de 2017

SP 2000

                             Cap I

O Conhecimento de Causa


Passava das 9h e André já estava atrasado. Depois de investigar a cena do crime na noite anterior, voltou direto para casa, mas ficou acordado até amanhecer o dia, ouvindo alguns vinis da sua coleção, enquanto pesquisava tudo sobre o juiz José Eliseu Neto, morto por atropelamento, no final da tarde. Mesmo já passando da hora para a reunião com o promotor, preferiu levar o jornal para ler na padaria da esquina de seu prédio, enquanto tomava o segundo café expresso do dia. Queria saber o que os abutres diziam sobre o acontecimento. Detestava se alimentar mal, gostava de preparar a própria vitamina e ler o jornal em casa. Considerava antiquado ler jornal, até incômodo, mas não conseguia largar o hábito e já aproveitava o papel para forrar a areia de seu gato, Maqui.

A morte do juiz já estava nas páginas policiais. “Como são rápidos esses malditos jornalistas”. Leu a matéria assinada por Berenice Castro, muito mais detalhada do que as notas que saíram nos sites da internet. “Hum, escreve bem essa Berenice. Nunca ouvi falar dela, deve ser nova na equipe e jovem, como costumam ser todos os repórteres policiais, cheios de sangue nos olhos e dispostos a trabalhar 12 horas por dia, de madrugada, em plantões nas delegacias. Não saiu nada sobre o atropelamento não ser acidental. O motorista passou por cima do José Eliseu quatro vezes”, pensou André sorrindo, meio macabro. Lembrava os trejeitos de uma repórter de óculos de aro vermelho e cabelo escuro, preso em rabo de cavalo, segurava uma agenda, caneta e gravador. “Tão clichê! Uma jornalista com cara de jornalista”. Iniciante ou não, trabalhava no maior jornal do País, na cidade de São Paulo. Ela iria atormentá-lo, seguir seus passos, fazer plantão no Fórum e não demoraria muito para saber sobre o assassinato.

O promotor, Sérgio Aguiar, o esperava ansioso, andando de um lado para o outro da sala, enquanto falava ao celular. “Enfim você chegou! Não havia nenhuma câmera naquela rua, sem prédios, só casas. E não conseguimos descobrir o que Zé Eliseu fazia naquele lugar. Gostaria que você falasse com os moradores, mas depois do enterro, seria bom você lá comigo, analisando algumas reações”. André serviu-se de mais um café, tirou o cabelo bagunçado de cima dos seus óculos e disse, casualmente: “Você tem ideia de quantas pessoas odiavam esse juiz? Sabe quantos casos escandalosos ele sentenciou? Isso vai ser muito trabalhoso e logo será notícia nacional”.

- Imagino, já me indignei com ele, mas poucas vezes trabalhamos na mesma Vara. Tão arrogante! E sempre com reclamações na Corregedoria, daí que ele demorava mais para marcar audiência, não respeitava prazo, sempre cercado das pessoas mais duvidosas.


André concordou, enquanto lembrava a saga dos pais de um acusado. O casal passou mais de 10 anos tentando provar a inocência do filho. O rapaz, preso aos 21, cometeu suicídio uma década depois, após sofrer todos os tipos de violência nas celas lotadas e sentir-se abandonado judicialmente. André fazia parte da equipe que encontrou o verdadeiro estuprador e assassino da garotinha de nove anos. Os dois eram realmente muito parecidos, negros e jovens, e a mídia e a sociedade exigiam punição para a monstruosidade. Mas o verdadeiro criminoso foi descoberto após exames de DNA, realizados em outra vítima. “Mas o pior foi não relevar provas que indicavam álibis para o acusado”, falou em voz alta.

- Como?

- Pensando que pode haver muitos suspeitos mesmo, esse juiz fez muita coisa errada na vida pública.

- Porque você não imagina como ele agia na vida privada.

André sentiu uma ponta de amargura no tom da voz, muito além do sarcasmo. Havia algo de pessoal entre eles.

- Vocês foram da mesma turma da faculdade, não?

- Eu era duas turmas mais novo, a esposa dele também. Ela era brilhante, mas acabou abdicando da carreira para cuidar dos filhos, da casa e do marido presunçoso. Foi desbravadora, a primeira promotora do Estado.

“Uhn, isso parece uma paixão secreta, tesão recolhido, não é apenas admiração de colega”, pensou.

- André, não é porque você faz a melhor análise de perfis criminosos do País que precisa analisar cada frase das pessoas, concentre-se no caso e nos suspeitos, por favor.

- Ainda não temos suspeitos, pode ser qualquer um. Só achei que você admira demais a senhora... como é mesmo o nome dela?

- Maria Luiza... mulher admirável mesmo, você vai ver no enterro.



Após o almoço, os dois voltaram ao Fórum para falar com os policiais que fariam a segurança na entrada do Cemitério do Morumbi. O enterro seria às 17h30 e o perfil emergencial do assassino é que poderia ser alguém muito próximo, devido à violência e ódio. A equipe ficaria atenta aos movimentos dos familiares, colegas de trabalho ou pessoas que tiveram a vida arruinada por alguma decisão errada ou tardia do juiz, como Amélia e Geraldo, pais de Paulo Freitas, o inocente suicida. Também Luciana Monteiro da Cruz, uma garota que, aos 22 anos, foi estuprada por quatro colegas de faculdade. O juiz José Eliseu não considerou estupro, eles pagaram uma fiança e prestaram serviços à comunidade, ficaram livres e tiveram ficha limpa. Sobre a garota, a última notícia era que tinha sido internada numa clínica psiquiátrica. Seria umas das próximas investigações da equipe.

Outra história com final trágico e também duvidoso, aconteceu há menos de um ano. Ele passou a guarda de uma criança de 3 anos para o pai, que havia inventado fatos para prejudicar a mãe, que ficou seis meses sem ver o filho, passando por várias perícias. Ninguém sabia dessa criança. Até que apareceu morta, provavelmente assassinada pelo pai, que está foragido. A mãe jurou matar esse juiz. Muitos tinham motivo para cometer um crime passional contra José Eliseu e André queria pensar melhor em como organizaria os próximos dias de trabalho, em como dividiria a equipe. Olhou pela janela do 11 andar, no qual trabalhava.

Era uma tarde cinzenta e fria de maio. Tinha ainda duas horas antes de ir ao cemitério e precisava relaxar. André resolveu voltar para casa. Quando entrou, Maqui deitou de barriga para cima, pedindo carinho. “Maqui, razão do meu afeto”, disse o rapaz, que estudou e trabalhou tanto até seus 32 anos, que esqueceu de se apaixonar. Na verdade evitou relacionamentos. Só em pensar nos abraços na rua, dormir junto, dividir espaço, sentia-se incomodado. Seus últimos encontros foram estritamente sexuais, com garotas que praticamente o atacaram e ele, por educação ou hábito, não disse não.

Colocou Led Zeppelin para ouvir, enquanto tomava um banho bem quente. Várias chamadas no celular para verificar, mensagens para responder e informações para checar. Fez tudo em 45 minutos, pegou seu sobretudo preto, o maior de todos, jeans e guarda-chuva.

O cemitério estava cheio de pessoas bem vestidas, alguns explicitamente interessados nas reações dos outros. André ficou perto da viúva, Maria Luiza, uma mulher de uns 50 anos, muito bonita, de postura reta e elegante. Parecia abatida, mas era de se esperar, ficou consolando as duas filhas, organizando funeral, atendendo o judiciário e evitando a imprensa. Não criou empecilhos, só pediu para esperar o funeral, parecia já conformada com a morte brutal do marido. Não fingia sofrimento, estava num estado de tristeza contemplativa. A impressão é que já vivia num estado de melancolia. E nada alterava seu estado psíquico depressivo.

Seguiu em passos lentos e olhar atento. André, apesar da magreza excessiva e altura, passava despercebido entre as pessoas, ninguém lembrava muito sua fisionomia, escondia seus traços delicados (dos quais se envergonhava) com óculos de míope e aro grosso e cabelos castanhos desgrenhados.

- André!

Vira-se e vê a tal repórter. Diminuiu os passos para que ela o alcançasse, mas sem perder a viúva de vista. O promotor Sérgio aproxima-se da viúva e lhe dá um abraço muito apertado. “Então são amigos!”

- Oi, sou Berenice, jornalista do Diário do Amanhã. Olha, vou ser breve: sei que esse juiz foi assassinado e por alguém tomado pelo ódio.

- Como? (finge um tipo de espanto, porque está realmente espantado com a descoberta da tal jornalista)

- Tenho contatos no IML e sei que passaram por cima do corpo 4 vezes e era um carro preto e nada foi filmado e ninguém viu nada.

Ainda atordoado com tanta notícia vazada, pega seu cartão no bolso e entrega para a repórter.

- Não vamos falar disso agora. Me liga e marcamos de encontrar amanhã.

- Amanhã estarei indo para o interior, entrevistar Luciana Monteiro da Cruz e sua família.

- Como? Essa moça está internada e não deverá ter alta antes de 5 meses.

- Não, teve alta forçada há 4 dias e está em casa.

A garoa fina engrossou e André abriu o guarda-chuva. Berenice agarrou seu braço e sorriu. Estava radiante por dentro. Há quatro anos, quando ainda estava na faculdade, assistiu à palestra do genial André Lins e Silva, o perito forense mais jovem da história, que traçava perfis psicológicos e psiquiátricos de criminosos e suspeitos. A partir dali acompanhou sua carreira e os crimes que ajudava a desvendar.

Percebeu que deixou seu quase ídolo confuso. Ele havia checado isso também!

- Impossível, acessei o sistema hoje e não havia essa informação.

- Você acessa sistemas, eu tenho acesso às pessoas. Nem tudo está na rede.

- Ok Berenice, você teria 15 minutos para tomar um café comigo agora?